segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Falar ou não de sofrimento

           A coisa que mais me surpreendeu aqui foi a falta de espaço para falar de si, das angústias, dos medos, assim como das conquistas e das maneiras de driblar pensamentos que consomem o cérebro de boa parte dos usuários dos serviços de saúde mental. Foi estranho chegar em um serviço onde não há muito espaço para falar de sofrimento.
Essa é a forma deles trabalharem.  Até aqui, nos quatro centros de saúde mental que tive a oportunidade de acompanhar, esse espaço simplesmente não existe. O psicólogo, ao meu ver, acaba ficando sem uma ação muito definida: não são feitas conversas privadas entre usuário e psicólogo, muito menos com a família do usuário, que pouco participa do processo.
O encontro com o psiquiatra dura minutos e é feita rapidamente, pois, como no Brasil, a correria nos centros é grande. Segundo os usuários a conversa é somente sobre a medicação. Mais uma vez, não há tempo para falar de si.
Na verdade, penso que não há interesse em entrar nesse assunto, pois falar de sofrimento é como abrir a porta de um quartinho sujo, antigo e cheio de "tranqueiras". Deve-se bagunçar tudo, limpar coisa por coisa, para depois dar início a arrumação. É cansativo. Exige tempo, atenção, dedicação e uma energia a ser dada ao próximo que não é fácil.

Cerati, Gorizia 1968, Ospedale psichiatrico
       No centro em que estou, participo de um grupo diário e, neste espaço, quando algum dos usuários tenta falar de si e de seus sofrimentos, a psicóloga, também coordenadora do grupo, imediatamente intervém e diz que aquele não é espaço para falar de sofrimento. É difícil ver e lidar com isso sem poder intervir. Principalmente porque os usuários constantemente dizem sentir falto desse espaço. 
      A dinâmica daqui, até onde percebi, é conseguir que as pessoas estejam inseridas socialmente.  Que tenham casa e emprego. Feito isso, está tudo certo. Funciona desse modo. As pessoas são assistidas e realmente participam dos diversos circuitos sociais. Isso, talvez, compense um pouco essa falta para alguns.
       Para os que sentem necessidade de uma atenção e de um espaço para trabalhar tudo o que passa em sua mente, resta pagar por uma terapia ou psicoterapia, o que está fora do circuito da saúde pública. Aqui, a opção mais barata de algum desses serviços custa 80 euros e, com esse preço, nem todos podem pagar e muito acabam ficando sem esse que, para mim, é um dos espaços importantes nos cuidados da saúde mental.
       Dessa forma, Trieste se faz diferente do Brasil. Tenho dito que muitas coisas daqui se contrapõem às do Brasil, e é daí que se agrega muito aprendizado desse estágio.

Cerati, Gorizia 1968, Ospedale psichiatrico

5 comentários:

  1. Aline, agora, teoricamente, ficará mais fácil comentar no seu blog!

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  2. Linee.. eu comento mas nao apareceeee..Nath

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  3. Quando eu conversava com outras meninas que foram para Trieste, percebia que a saúde mental em Trieste era bem diferente da saúde mental aqui no Brasil. O trabalho clínico nos serviços de saúde mental brasileiros são intensos e valorizados. Desta forma há grupos de terapia comunitária, terapia individual em alguns casos, terapia familiar em outros, etc... Como o saúde mental italiana é referência para o Brasil achei que os serviços daí seguissem a mesma lógica, mas percebi, lendo os seus relatos e conversando com as outras meninas, que são bem diferentes! Na Itália, valoriza-se, como você mesma disse, a inserção social do paciente, a possibilidade de ele exercer sua cidadania, pressuposto principal da reabilitação psicossocial, o que faz com que a rede de serviços de saúde funcione com grande eficiência. No Brasil, o trabalho em rede, bem como em equipe multiprofissional ainda é um grande desafio. Acho que os serviços de sáude mental italianos e brasileiros tem muito a trocar e aprender um com o outro! Mas entrando em contato com outras experiências em saúde mental, percebo que apesar de muitos desafios a serem enfrentados, o Brasil avançou muito nesta área! Fico feliz!

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  4. Eu também concordo com vocês!!
    Como a Juliana França disse, eu acho que a gente arrasa aqui no Brasil, temos muuuito mais dificuldades sociais que eles, temos que combater a miséria em níveis que Trieste nem se quer sonha. A inserção social nossa é muito mais em baixo o ponto a se discutir.

    Mas voltando a sua pergunta no título deste post Aline. Para mim a opção dentro de um Centro de Saúde Mental, é sempre falar do que esta se sentindo, é sempre dar uma escuta para as pessoas que estão buscando ajuda no espaço. A atenta escuta, mostrando apenas um interesse para ouvir o que para o outro faz sentido, por si só pode ser muito transformador, e para ambos os lados, e muita vezes não apenas para quem busca ajuda ali, afinal que ser humano gosta de se sentir ignorado?!
    A escuta sincera, estar presente na relação, é o que todo ser humano busca na relação com o outro principalmente quando se esta adoecido psiquicamente.

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  5. Aline!!!
    Parabéns pelo blog!!!É fascinante ler seus relatos, e não tem como não fazer esse paralelo com o atendimento aqui do Brasil.Toda essa vivência que está sendo e é muito enriquecedora.
    Nos serve para darmos conta do quão importante e válido está sendo o trabalho da saúde mental no nosso país.
    Como as meninas disseram, lidamos com muito mais dificuldades que eles e o trabalho está sendo muito bem feito.

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