domingo, 9 de junho de 2013

Doença?

As pessoas costumam ter medo da loucura. 


A mente humana é muito e muito e absurdamente MUITO alucinada. Acredito que uma pequena parcela da população acessa tais partes sem se dar conta, sofrem com isso e são chamados de loucos; uma outra pequena parte acessa de forma consciente por meio do uso de algumas substancias químicas alucinógenas ou técnicas de alteração do estado de consciência; e uma outra parcela que não acessa nada, apenas se aproxima (maioria da população) e treme ao se aproximar. A diferença da primeira para a segunda é que na primeira a pessoa não tem controle do início, não tem idéia tempo de duração, não se prepara para tal vivência e se perde/envolve nos enlaces da mente. Desta forma, o que em uma torna-se uma escolha com começo, meio e fim, na outra, torna-se uma parte do eu. 


Hoje vou falar daqueles que apenas se aproximam das múltiplas sensações e emoções da mente humana e tremem com isso. Primeiramente gostaria de dizer que gosto da idéia de que a loucura anda com nós, sem a notarmos, e andará com todos considerados seres racionais. Uso a palavra loucura não no sentido de uma doença, mas no sentido de uma alteração do nosso estado "normal" de consciência, podendo essa alteração ser geradora de prazer e bem-estar ou geradora de um intenso sofrimento. Vale a pena lembrar que o conceito de loucura como doença é bem recente na nossa sociedade. A indústria farmacêutica soube se aproveitar muito bem deste conceito, de modo a criar medicações para todo tipo de estado alterado não produtivo socialmente e também soube se aproveitar muito bem das fraquezas dos seres humanos ao se verem próximos de seus sofrimentos, fazendo com que estes acreditassem estar doentes. Afinal, é muito mais confortável eu ter como resposta que o meu sofrimento é algo que não me pertence, que não fui eu quem o produziu "mas que foi um probleminha de origem biológica que está me causando uma baixa produção um hormônio x e  y da felicidade". Assumir as próprias fraquezas e loucuras poucos fazem, cutucar as feridas e trabalhá-las terapeuticamente a longo prazo, muito menos, afinal das contas, "não sou louco, tempo é dinheiro e me passa logo essa cartelinha de remédios aqui".


Trabalho em um serviço de saúde mental e vejo o quanto o sofrimento humano tem sido transformado em doença por MUITOS médicos, que produzem doentes, taxando qualquer tristeza/desânimo em doença, e criando dependentes de benzodiazepínicos (diazepam, clonazepam, rivotril etcc - os tranquilizantes e ansiolíticos da vida) gerando mais um problema de saúde pública. Vejo umas coisas absurdas como: moro na periferia, perdi um filho assassinado, meu outro que está vivo é usuário de droga e rouba as coisas de casa, meu marido é dependente de alcool, me bate quando faz uso, trabalho 12 horas ao dia, tenho dificuldade para dormir, me sinto desanimada, às vezes falto no trabalho por isso. O mais absurdo dessa história é a de terem delegado ao  poder médico (saúde) a espectativa de solucionar um problema de contextode vida, cultura e estrutura social, e o pior é que muitos psiquiatras acreditam que tem esse poder. Por exemplo, a única coisa que o médico escuta dessa história é: "tenho dificuldade para dormir, me sinto desanimada, às vezes falto no trabalho por isso". Ele diz: "é depressão, toma uma fluoxetina que passa". Não passa! Pois o problema desta pessoa não vai passar com esse comprimido, uma vez que o problema não é esse, mas sim de ordem social e de como a pessoa se organiza psiquicamente frente a estas situações.

Ok. Aí você me pergunta: Qual o problema de querer me manter longe das minhas questões por meio de um comprimido?? Nenhum problema para mim, mas para quem faz isso, talvez um dia perceba que as tristezas,  as perdas, a falta de dinheiro, de emprego, de pessoas próximas e as diversas imprevisões da vida, continuarão a acontecer, com comprimido ou sem comprimido. 


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Tradução do Texto "Io non sono un animale incivile"


Aqui vai a tradução do texto que meu amigo Pino escreveu carinhosamente a meu pedido.
Conheci Pino no Centro de Saúde Mental que estagiei. No início não sabia se ele era usuário, trabalhador ou voluntário, mas como ele começou a frequentar o grupo que eu e uma colega coordenávamos, pude saber mais dessa grande pessoa.

Eu não sou um animal irracional.
Eu sou meus pensamentos e minhas palavras, sou o ambiente que me circunda, sou esta sociedade. Esta sociedade controvérsia, indiferente e superficial.
Eu sou a minha doença mental, aquele que fui e aquele que serei.

Eu me curarei.

Gostaria que soubessem que eu era uma pessoa com muitos problemas, muitas e muitas vezes toquei o fundo, muitas e muitas vezes me agarrei com todas minhas forças a um fio aparentemente imperceptível chamado esperança, mesmo quando parecia que a mesma não existia mais. Errei muitas e muitas vezes. Errarei ainda mais, mas não tenho mais medo.

Eu me curarei.

Para se sair da crise precisamos de instrumentos e ferramentas indispensáveis para mudar, para começar uma vida possível, sobretudo na sutil e difícil passagem entre estar/viver mal, ao estar/viver bem. Momentos cansativos que vão afrontar, sustentar e fortalecer a confiança e a esperança.
Se trata de preencher um vazio, construir um objetivo, uma identidade possível, onde “eu sou eu e não minha doença mental”. Um jogo contínuo, onde os instrumentos servem para mudar e as mudanças se tornam novos instrumentos. Uma pessoa sedada não pode fazer mal, mas também não pode fazer bem.

Jeito Basagia

“O tratamento de qualquer doença, do corpo e da mente cansa, um cansaço que com ajuda adequada se pode suportar, e ainda assim, não é o cansaço que mais incomoda. O que incomoda é o momento que vem depois. Quando uma pessoa começa estar suficientemente boa para se arriscar na vida, no cotidiano, na dita normalidade. Tendo vivido por tanto tempo na outra parte da barricada, não se sabe ainda como se faz para estar dentro deste novo jogo onde tudo é possível e, justamente por isso, extremamente perigoso.”

Gostaria tanto de começar a traçar um novo percurso no qual pudesse vislumbrar a luz da cura.

A cura não é necessariamente libertar-se dos fármacos, libertar-se de um serviço de atendimento, libertar-se de um psiquiatra ou psicólogo.
A cura é a liberdade em escolher a nossa estrada, de encontrar um trabalho, uma companhia, amigos. A cura é poder assistir a um belo concerto ou a um espetáculo teatral. A cura é vencer o estigma que ainda existe na vida de quem vive essa experiência. A cura é, sobretudo, substituir a palavra “TOLERÂNCIA” pela “ACEITAÇÃO”. A cura é criar um modo em que não exista contenção, abusos farmacológicos, manipulação psíquica.
A cura é uma aliança entre quem usufrui dos serviços de saúde mental e aqueles que fornecem esses serviços.
A cura é acabar com as instituições manicomiais, com a violência psíquica e física, com a indiferença
Enlouquecer é possível, curar é possível.

Pode ser um sonho, uma utopia ou simplesmente uma direção.
Um ponto de partida?
Quem conta é uma amiga, Alice Banfi, autora do livro autobiográfico “Tanto scappo lo stesso”:

"Era 2004, o recordo bem. Raramente era internada no SPDC (Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento) da minha cidade.
Era internada em uma comunidade reabilitativa próxima a Torino. Rodava todos os serviços de Piemonte e proximidades. Fui mandada pra lá e pra cá. Haviam muitos rostos conhecidos, alguns novos.
Um rapaz chinês, Matteo Su, estatura baixa, falava de modo desconexo e veloz.
Era assustado e agitado, lembrava uma criança, suscitava em nós, outros pacientes, uma grande ternura.
Vinha sempre ao meu quarto me ver desenhar e pedir emprestado canetinhas.
Uma vez, voltou com um desenho nas mãos, cheio de cores. Tinha desenhado flores e sobre o desenho tinha escrito “para Alice”. Era mimado e protegido por todos...todos nós.

Há tempos não sabia dos direitos das pessoas que vivem o sofrimento psíquico, não sabia nem mesmo que existiam. Hoje sei que uns dos direitos dos usuários dos serviços de saúde mental é aquele de ser chamado pelo próprio nome e sobrenome.
Qualquer enfermeiro chamava Matteo “CinCin” ou “Cinciunlá” e coisas do gênero...
Isso porque Matteo era chinês, porque não podia e não sabia como se defender.
Um dia de tarde estávamos em quatro a conversar, próximos a uma enfermeira: juntamente a nós estava também Matteo.
Sara, uma enfermeira, o chama pela milésima vez pelo estúpido sobrenome: “Ei, Cinciunlá dá uma acalmada!” Matteo reage: Eu me chamo Matteo!!! E batia os pés no chão, enquanto repetia com força seu nome.
Sara si virou, o olhou, indicou com a mão e braço esticado, e disse: Fly down.
Rapidamente Matteo parou de falar, parou de bater os pés. Ela continuou: abaixa a crista, voe baixo.
Matteo ajoelhou-se.
“Muito bem, sempre abaixo”.
Matteo se jogou no chão, com os braços esticados a frente do corpo.
“Isso, agora se arraste!”
E Matteo começou a se arrastar, com o rosto arrastando no chão. Se arrastava como um verme em direção ao corredor.
A enfermeira se virou e entrou na enfermaria, fechando-se lá.”.

Que coisa se pode dizer?
Que coisa se pode penar?
Que coisa se pode dizer?

Acredito que é um desafio no trabalho unir-se: Nós, usuários, com vocês, trabalhadores. Todos juntos devemos buscar mudanças, potenciar o serviço de psicoterapia e eliminar qualquer forma de contenção, física e psíquica.

Era isso que Basaglia tinha em mente?

Esse texto que me foi pedido é uma grande oportunidade para nos conhecer e unirmos nossas vozes, para tentarmos continuar a construir, melhorar e a criticar. É uma possibilidade. É uma das tantas possibilidades que a vida nos coloca a disposição.

Nós devemos lutar dia por dia, hora por hora, minuto por minuto para viver, para existir.
Não devemos permitir ou delegar e ninguém, seja trabalhadores da saúde mental, familiares ou associações de voluntariado, de escolher ou decidir por nós, mas de colaborarmos um com os outros, sem medo de falar.

Se já esteve mal e agora está melhor, seja grato pela oportunidade que lhe foi dada.
Se está sofrendo, saiba que encontrará pessoas humanas, sensíveis, altruístas, amigas, que terão certamente um segundo plano. Se não as encontra ou não as veem, mude o caminho. O mundo é vasto, imenso, rico de oportunidades.

Se é um usuário dos serviços de saúde mental, saiba que passaremos por dificuldades.
Nós somos aqueles que estão em teste na sociedade.
Podemos aceitar ou não, podemos nos esconder ou reagir, demonstrar o nosso valor.
Demonstrar que estamos bem, que estamos melhores, ou explicar francamente quais são as raízes de nossos sofrimentos.

Ajude os outros, sobretudo, se ajude.

Pino, Trieste.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Reativando o Blog


Pessoal, muito tempo sem postar nada e mesmo assim muitas pessoas continuam acessando o blog e me procurando por informações sobre Trieste. Tempo faz que queria dar continuidade ao blog, mas tem momentos que a nossa desorganização mental é tanta, que sentar por alguns minutos para escrever parecem impossíveis de serem realizados. Hoje estou reativando o blog, não mais escrevendo de Trieste, pois já estou no Brasil. A idéia é continuar abordando questões da saúde mental, traçando paralelos com a Itália sempre que achar pertinente. 

Para atualizá-los, estou trabalhando em um CAPS II Adulto na periferia de São Paulo, onde o principal fator adoecedor é a miséria e a violência.

Como prometido e não feito na última postagem, farei a tradução do texto de Pino, usuário do serviço de saúde mental e militante. Espero conseguir fazê-la hoje e já postá-la. 

E por favor, continuem perguntando, dicutindo e colocando pontos que enriqueçam o conteúdo do blog e de nossas mentes.

Abraços